Texto de José Miguel Wisnik:

“No início parece estar o impossível: escutar a própria língua como se escutam as línguas estrangeiras. Mas viver no estrangeiro – tendo que enrolar a língua para dizer word-world, essa palavra-mundo – acaba fazendo com que a autora entreouça em obras escritas no Brasil algo das singularidades envolvidas na escuta da língua portuguesa e numa escrita de ouvido, como a que Clarice Lispector pratica.

Mais ainda do que ouvir a aura da língua que falamos, trata-se também de ouvir a ressonância aural do silêncio, o pulsar inaudível da escrita e, mesmo quando lemos, mudos, a respiração ressonante na garganta inervada desse tubo sonoro que somos.  

Uma orelha assim atenta ao sutil e ao quase impronunciável detecta ainda, numa oitava mais baixa e de alcance mais geral, a propensão ao “romance da escuta” na literatura feita no Brasil, portando características auditivas próprias: um narrador-autor que se põe a ouvir o personagem-escritor, duplicando a figuração da autoria (como no caso de Brás Cubas e Bento Santiago); um regime de conversa que se desenvolve no diálogo explícito com os leitores (como acontece tantas vezes em Machado); uma obra que simula estar sendo escrita no próprio tempo da leitura. Em Grande sertão: veredas o que se ouve é a grafia, ou a etnografia ficcional, de uma imensa sessão de audição da fala, em que o pacto entre o oral e o hiperletrado produz o estranhamento de uma cultura que se escutasse a si própria como se fosse a um tempo íntima e estrangeira.         

Todas essas considerações nos levam, em Escrever de ouvido, à imersão sonora e silenciosa na ecopoética aural de Clarice Lispector, cuja obra se faz ouvir como a mais extremada das metamorfoses da escrita em escuta.  Marilia Librandi deslinda, no gesto augural de Clarice, detectado no parágrafo inicial de Perto do coração selvagem, a sutilíssima mecânica sonora que reverbera entre a máquina de escrever, o relógio, a própria mudez das coisas e o silêncio.  “Silêncio roçando o silêncio”, como o ruído branco que soará no fundo de A paixão segundo G.H., este livro que se revela uma câmara de ecos.

Desde o começo da escrita, em Clarice, uma orelha “grande, cor-de-rosa e morta”, à escuta.

Calemos esta aqui, e escutemos.”

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